segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

A relevância moral de Jesus



Embora originalmente fosse uma celebração do Deus Sol (que acontecia no solstício de inverno), o natal passou a ser ressignificado no século III pela Igreja Católica como fins de cooptar os povos pagãos que estavam sob o domínio do Império Romano e, de quebra, aproveitou para comemorar o nascimento de Jesus. Apenas esta breve contextualização já sugere algo de suspeito na ideia que cede uma noite festiva para comemorar a vida de um sujeito que viveu há mais de dois mil anos. Disso se segue alguns questionamentos interessantes: Jesus existiu? Se existiu, qual sua relevância no avanço de questões morais?

Se considerarmos as evidências disponíveis, bem como a opinião majoritária dos historiadores sérios da área, a questão não deixa dúvida: Jesus realmente existiu. O historiador Bart Ehrman dedicou uma parte de sua carreira para fazer divulgação de história precisamente sobre esse tema, e no ótimo livro “Jesus exitiu ou não?", Ehrman rebate vários dos argumentos mais comuns que consideram a existência de Jesus algo fabricado, revisando a opinião de estudiosos sobre as várias fontes disponíveis, tanto as cristãs como as não cristãs. No entanto, Jesus seguramente não foi aquela figura caucasiana com cabelos aparentemente bem cuidados que tantas vezes é retratado. Tampouco deve ter sido o Jesus glorificado pelo Vaticano, que ressuscitou dos mortos para provar que sua dimensão divina era verdadeira. E muito menos crível é que este sujeito fosse a encarnação de Deus, concebido pelo Espírito Santo para nascer de uma virgem e que viria a violar todas algumas das leis das física que conhecemos. 

Com relação a um dos eventos mais estimado pelos cristãos, ou seja, a ressurreição de Jesus, é comum atribuir algumas provas para o evento, tais como o túmulo vazio, a conduta dos discípulos e a ascensão do cristianismo. No entanto, essas alegações suportam, no máximo, o que o filósofo Michael Martin chama de ressurreição no sentido fraco, que seria o fato de Jesus sendo trazido de volta à vida sem atributos sobrenaturais. No entanto, uma breve reflexão sugere que tudo o que existe sobre a ressureição não passa de uma insuficiência generalizada de evidências que não dão conta de demonstrar a existência do alegado evento.

Uma vez reconhecido a historicidade de Jesus, é natural a que próxima questão diga respeito aos seus ensinamentos morais. Em outra discussão promovida pelo Michael Martin, ele nos lembra de que Jesus raramente abordou temas morais da sociedade atual, como aborto, pena de morte, guerra, contracepção e discriminações sociais. Poder-se-ia objetar que em sua época estes temas serviam de pouco interesse para a maioria, mas essa desculpa não vence a dificuldade que é conseguir deduzir minimamente algo claro sobre as ideais de Jesus sobre estes tópicos. Ainda, a objeção levantada nem sempre pode ser levada com muita seriedade, visto que não há nenhuma evidência de que Jesus tenha atacado a prática da escravidão, mesmo ela sendo comum no seu tempo. 

Conforme comenta o Martin, embora o seu dito “ame seu vizinho” possa implicar uma ideia de amar seus inimigos, e portanto um esboço contra a pena de morte, suas ameaças ao fogo do inferno aos pecadores sugere que às vezes ele possa considerar a morte ou outra punição violenta como apropriada. Várias de suas lições são ambíguas ou até mesmo moralmente questionáveis para um cristão moderno. Por exemplo, apesar de algumas passagens bíblicas defenderem a venda de bens com doação aos pobres, não hesitou em afirmar coisas como que um homem rico não pode entrar no Reino dos Céus.
Uma observação ainda mais poderosa é a exposta pelo Bertrand Russel, e que diz respeito sobre o caráter de Cristo. Não podendo me expressar melhor que ele, segue alguns excertos de passagens relevantes:
“Chega-se, a seguir, às questões morais. Há, a meu ver, um defeito muito sério no caráter moral de Cristo, e isso porque Ele acreditava no inferno. Quanto a mim, não acho que qualquer pessoa que seja, na realidade, profundamente humana, possa acreditar no castigo eterno. Cristo, certamente, tal como é descrito nos Evangelhos, acreditava no castigo eterno, e a gente encontra, repetidamente, uma fúria vingativa contra os que não davam ouvidos aos seus ensinamentos – atitude essa nada incomum entre pregadores, mas que, de certo modo, se afasta da excelência superlativa. Não encontrareis, por exemplo, tal atitude em Sócrates. Encontramo-lo bastante suave e cortês para com aqueles que não queriam ouvi-lo– e, na minha opinião, é muito mais digno de um sábio adotar tal atitude do que mostrar-se indignado. Provavelmente vos lembrareis das coisas que Sócrates disse quando estava agonizando, bem como das coisas que em geral dizia às pessoas que não concordavam com ele. Vereis que, nos Evangelhos, Cristo disse: “Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação ao inferno?” Isso foi dito a gente que não gostava de seus ensinamentos. Esse não é, realmente, na minha opinião, o melhor tom, e há muitas dessas coisas acerca do inferno. Há, por certo, o texto familiar acerca do pecado contra o Espírito Santo: “Quem falar contra o Espírito Santo não será perdoado, nem neste século nem no futuro”. Este texto causou indizível infelicidade no mundo, pois que toda a espécie de criatura imaginava haver pecado contra o Espírito Santo e achava que não seria perdoada nem neste mundo, nem no outro. Não me parece, realmente, que uma pessoa dotada de um grau adequado de bondade em sua natureza teria posto no mundo receios e terrores dessa espécie.

Diz Cristo, ainda: “O Filho do homem enviará os seus anjos, e tirarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade. E lançá-los na fornalha de fogo. Ali haverá choro e ranger de dentes”. E continua a referir-se aos lamentos e ao ranger de dentes. Isso aparece versículo após versículo, e fica bastante evidente ao leitor que há um certo prazer na contemplação dos lamentos e do ranger de dentes, pois que, do contrário, isso não ocorreria com tanta frequência. Vós todos vos lembrais, certamente, da passagem acerca das ovelhas e das cabras; de como, na segunda vinda, a fim de separar as ovelhas das cabras, irá Ele dizer às cabras: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno”. Ele continua: “E irão eles para o castigo eterno”. Depois, torna a dizer: “E se a tua mão te escandaliza, corta-a; melhor é entrares na vida aleijado, do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga. Onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga”. Repete também isso muitas e muitas vezes. Devo dizer que considero toda esta doutrina – a de que o fogo eterno é um castigo para o pecado – como uma doutrina de crueldade. É uma doutrina que pôs crueldade no mundo e submeteu gerações a uma tortura cruel.”

Apesar disso tudo, penso que Jesus merece alguma relevância moral sobretudo se pensarmos no contexto no qual estava vivendo. Alguém que defende publicamente ideias como a Regra de Ouro — ou seja, preceito moral de não fazer a seu próximo aquilo que não gostaria que fizessem a você — numa época em que contendas tribais eram resolvidas majoritariamente pela escolha do sangue em detrimento da razão é uma coisa digna de respeito. No entanto, como mostra uma simples constatação histórica, ensinamentos deste tipo já estavam presentem em vários outros textos sagrados de outras religiões, muito antes de a Era Cristã ter início.  Buda cerca de quinhentos ou seiscentos anos antes já havia dito coisas similares. Então Jesus, como qualquer outro homem na face da Terra, acertou muito, e errou bastante também. Qualquer outra exaltação a Jesus Cristo serve mais aos propósitos da fé descompromissada com a realidade, um grupo ao qual não me incluo.

[Quadro do pintor flamengo Peter Paul Rubens]