domingo, 28 de dezembro de 2014

O cinema nacional em 2014


Entre Nós ( Paulo Morelli)
Eis uma expressão típica de alguém que recentemente viu um filme: "Poxa, o filme é muito bom. Nem parece que é cinema nacional." Então diagnóstico mais provável é: Você tem visto pouquíssimos filmes nacionais, pois esta é a média da qualidade de nossas produções. De fato, filme brasileiro de boa qualidade não é nenhuma aberração: Nossas produções estão entre as mais versáteis do mundo, tanto em forma como em conteúdo. E quem pensa que esta alegação é muito ousada basta checar os títulos lançados no ano de 2014.

Hoje eu não quero voltar sozinho (Daniel Ribeiro)
Como referência, lembremos o informe da ANCINE relativo ao primeiro trimestre do ano:  Foram vendidos 7,3 milhões de ingressos para filmes nacionais (comparando, a venda de filmes estrangeiros foi 4 vezes maior). Mais do que isso, três filmes brasileiros se posicionaram na lista das dez maiores bilheterias deste período: Muita Calma Nessa Hora 2, S.O.S Mulheres ao Mar e Até que a Sorte nos Separe 2. Este último, por exemplo, superou o número de salas em que estreou filmes estrangeiros como 300: a ascensão do império e Robocop. Apesar destes números animadores (representa quase 16% a mais do que o mesmo período do ano passado) nenhum dos filme desses três filmes revelam a diversidade do cinema atual. Ou melhor, eles fazem parte de um universo de filmes bem mais rico. É evidente que esses três exemplares atingiram maior público porque foram lançados em um maior número de salas: Maior número de salas implica maior bilheteria. Entretanto, popularidade não implica necessariamente em qualidade, muito menos em totalidade (tendo em vista a diversidade de nossos filmes). Não é por acaso, portanto, que recentemente a ANCINE propôs uma discussão para evitar filmes ocupando mais de 30% das salas de cinema (não tem sido um ato de imposição como alguns pensam, justamente porque a decisão tem sido pensada após discussões maduras com os exibidores e distribuidores, os quais inclusive têm aceitado a ideia [leia mais aqui]) -- justamente para evitar a prática de uma concorrência predatória e abusiva.

Tomando a cidade de Porto Alegre como uma referência (representa uma média do que chega aos cinemas), segue uma pequena lista dos filmes que tiverem exibição em 2014. A lista refere-se aos filmes que eu vi (a cotação é minha, e de maneira alguma deve ser entendida como um guia para o que deve ou não ser visto).



No total, foram 28 filmes. Alguns comentários:
- Numericamente, essa quantidade equivale a mais de 2 filmes por mês ao longo do ano. Um número razoável, embora ainda pequeno, frente a quantidade de filmes produzidos anualmente. Mas, certamente, é uma boa oferta ao espectador (sobretudo para aquele que diz não existir boas produções nacionais, mas não vê os filmes).

- É notável a diversidade de gênero, temática e criatividade. Compare, por exemplo, dois maravilhosos títulos como Educação sentimental e o O lobo atrás da porta; são não apenas tematicamente distintos, mas ilustram a riqueza de obras tão diferentes que fica difícil pensar que algum dos dois não agrade algum público (em alguns casos ambos agradam o mesmo espectador, como foi o meu caso).
- No que diz respeito à qualidade do filme, apenas dois eu classifiquei como regular (Getúlio e Meninos de Kichute).


- Todos os filmes estavam com acesso relativamente fácil. Certamente metade deles estiveram em cinemas de shopping (embora, infelizmente, com número de cópias reduzidas).
- Esta é uma pequena lista. Evidentemente há muitos outros filmes que não consegui ir ver. Muitos deles tivereram estreia comercial, e por algum motivo não pude conferir. Ao longo do ano registrei alguns títulos que tiveram exibição e eu não vi. Segue alguns exemplos: A Farra do Circo, Em busca de um lugar, Jogo das decapitações, Até que Sbórnia nos separe, Tim Maia, Janeiro 27, De volta, As Aventuras do Avião Vermelho, Brincante.
- E há outros títulos (alguns promissores) que ainda não tiveram exibições, como: Uma passagem para Mário, Gata velha ainda mia, Entre vales, Insônia, Jogo de xadrez, O grande Kilapy, O segredo dos diamantes, O menino no espelho.
- Obviamente, há outros que devem ter estreados e me passou desapercebido neste momento.
O lobo atrás da porta (Fernando Coimbra)
- Curiosamente, alguns detratores do cinema nacional pensam que nossas obras se resumem  às globochanchadas. Algumas dessas obras são, eu reconheço, de qualidade duvidosa. Mas é um pouco desonesto manifestar desagrado ao cinema nacional se o sujeito se limita a essas obras e, ainda pior, se opõe à medidas inclusivas como a da ANCINE (que deve permitir mais diversidade de filmes). Rubens Ewald Filho comenta sobre isso: “Por alguma razão o espectador normal ou costumeiro só vai assistir as comédias, em geral cariocas, com a mesma meia dúzia de atores, rendendo mais ou menos, dependendo de serem melhores ou piores.”
- Os que não veem os filmes (por desinteresse ou mesmo por pouco acesso) não estão em condições de levar adiante a lógica torta “eu não vi, logo não existem”. Eles existem, e não há evidência melhor para isso que os próprios filmes (já comentei sobre isso aqui e aqui).
  - Minha defesa ao cinema nacional é uma consequência da qualidade dos filmes, e não porque eles são nacionais. Se eu fosse entrar na onda da síndrome do cachorro, a tendência provável seria eu torcer o nariz e evitar os filmes. Abandonar a preguiça e o preconceito fílmico pode ser uma experiência cultural recompensadora. Os filmes estão por aí. Basta vê-los!

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Natal para ateus?

Natal é para todos e todas que quiserem.

Existe uma justificativa histórica: Muito antes da existência de Jesus, já existia o costume dos povos pagãos como a árvore, o pinheiro e a troca de presentes. Um dos festivais mais conhecidos foi a Saturnália, um festival romano que honrava o deus Saturno no mês de dezembro (quem datam de pelo menos dois séculos antes de Cristo). É correto dizer que o Natal foi um "agregado" de várias culturas pagãs que a igreja católica adotou. 

Ser ateu não é, necessariamente, ser anti-religião. Não só pelo fato de existirem religiões ateístas (como o budismo e o jainismo), mas também pela mero reconhecimento que pessoas têm crenças (e sim, ateísmo é uma crença) pelas mais diversas razões e, por isso, são dignas de respeito (respeito à pessoa, o que não significa que crenças não possam ser criticadas e discutidas). Parte disso explica meu afastamento das ideias mais exageradas como aquelas incentivadas por Richard Dawkins. Alguns estariam dispostos a entender que a religião é um dos maiores males existentes, e portanto devemos aderir a uma batalha (não-violenta) para extingui-las. Eu penso que essa tese não é apenas um delírio do ponto de vista operacional, mas também é moralmente equivocado. O desejo de homogeneizar crenças pode ser igualmente perigoso quanto a ortodoxia extremista adotados por alguns em um mundo com pluralidade de crenças.

Para alguém que já foi um religioso frequentador de cultos, posso dizer por experiência (embora minha subjetividade não seja verdade absoluta) que participar de eventos religiosos pode ser muito recompensador. Mas, como diria Carl Sagan, nem tudo que é reconfortante necessariamente releva uma verdade. Não pretendo me alongar nas razões pelas quais abandonei a crença cristã. O que está em causa neste momento é: Ser ateu não é fazer parte de uma elite intelectual que tem acesso privilegiado da verdade; da mesma forma, ser cristão não dá direito exclusivo a uma comemoração chamada Natal. Naturalmente que o cristão deve entender a data de uma maneira distinta daquela do ateu. Mesmo assim, até mesmo o ateu pode, se quiser, comemorar o nascimento de Jesus. Não vejo nenhuma contradição nisso, desde que entenda a data como comemoração do Jesus histórico (e não mitológico -- aliás, muito provavelmente longe de aparentar aquele semblante caucasiano espalhado pelas mensagens bonitinhas) que ajudou a espalhar boas práticas morais. De qualquer forma, a chamada regra de ouro ("Não faça aos outros o que você não quer que seja feito a você") nem é original de Jesus. Há registros que pensadores em épocas anteriores chegaram a mesma conclusão de maneira independente. Alguns chamam de ética da reciprocidade: Apareceu coisas semelhantes no budismo, no zoroatrismo, no judaísmo, no confucionismo, no hinduísmo, e recentemente (em comparação com as demais religiões) no cristianismo.

Da mesma forma como o Natal não é exclusividade dos cristãos, qualquer arte insipidara e produzida por religiosos pertencem a toda a humanidade. Eu sou grande admirador da banda U2 (uma banda evidentemente cristã, inclusive com letras explícitas) e fascinado pela obra cinematográfica do russo Andrei Tarkovsky (um religioso declarado, inclusive em seus filmes). Isso revela algo muito peculiar: Sentir-se envolvido por uma manifestação cultural não é exclusivo de uma crença. Basta a arte existir no mundo que qualquer indivíduo pode ser vulnerável a ela. E não é apenas empatia que está em causa. Acredito que qualquer ação que não possa ser inclusiva -- ou seja, que coloquem pessoas em guetos e as classifiquem preconceituosamente --, é uma ação condenável moralmente. E para entender isso apenas emoção pode não ser suficiente. É necessário investir um pouco de razão.

Confraternizar com pessoas com crenças diferentes não é apenas culturalmente enriquecedor (desde que a confraternização não traga nenhum dano --psicológico inclusive -- ao sujeito), mas é também reconhecer racionalmente que um mundo plural e diverso é a melhor resposta que humanidade pode dar no sentido de evitar os excessos destrutivos que têm sido, infelizmente, uma marca registrada deste frágil planeta

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Maconha incomoda muita gente. Sua descriminalização incomoda muito mais.


                                    Também publicado no blog da Liga Humanista do Brasil (LiHS) - Bule Voador

Artistic Marijuana Leaf By Imahb Dsme
O cheiro da maconha pode incomodar muita gente. Mas odor desagradável não é um bom argumento para proibir consumo. Para entender isso é necessário apenas o simples paralelo: Proibiremos o consumo de cigarro porque seu cheiro também incomoda. Em locais públicos, a melhor maneira de compatibilizar os fumantes e não fumantes é justamente criar locais específicos para o consumo. O consumidor também pode ser educado, como boa parte dos consumidores de cigarro são, ao fazerem a pergunta “você se importa que eu fume aqui?”
Não é cabível continuar com a criminalização. É possível defender isso de duas maneiras complementares, uma científica e outra moral.
A política antidrogas atual no Brasil não é apoiada em evidências: À luz dos melhores resultados empíricos que dispomos, a maconha causa menos danos físicos e sociais que outras drogas facilmente disponíveis (álcool e cigarro). Disso não segue, obviamente, que a maconha seja isenta de efeitos colaterais. Entretanto, são mais sutis e menos agressivas a tal ponto que os benefícios do uso (medicinal) pode superar as eventuais contraindicações. Uma delas é que com a liberação comercial deve vir junto o uso médico.
A relação com o argumento moral é a seguinte: Não parece aceitável criminalizar uma droga que não apenas apresenta potencial de uso médico, mas que já existem terapias relativamente confiáveis em que seu uso pode ser aplicado — como servir de aliada a tratamentos de alguns tipos de câncer. Alternativamente, outra defesa moral é possível, e que pode ser defendida a despeito do uso medicinal: É limitar a liberdade dos outros que a usem como consumo recreativo; alguém não gostar de algo não deve implicar proibição geral. Além disso, parece ser apenas uma falsa preocupação o desejo de proibir em nome da saúde. Preocupação real seria muito mais efetiva se, antes de ditar o que o outro pode ou não consumir, o sujeito cuidasse da sua própria saúde, e parasse de fumar e/ou beber álcool. O que não deixa de ser curioso: Muitos dos adeptos da proibição da maconha consomem ambas as drogas, ao mesmo tempo.
Uma possível objeção comum é dizer que há outras preocupações imediatas do que a descriminalização da maconha, mesmo reconhecendo-se seus efeitos comparativamente menos nocivos. Essa ideia, porém, é uma típica falácia da prioridade. Investir um pouco de atenção em uma coisa não impede que outras sejam atendidas concomitantemente.
E por que não seria prioridade? Atualmente, no Brasil, o indivíduo flagrado é tido como criminoso. A lei atual é incapaz de distinguir claramente quem é consumidor de quem é traficante. E qual a evidência disso? O inchaço no sistema prisional: Além de possuir a terceira maior população carcerária no mundo (só perdendo para a China e Estados Unidos), estima-se no país uma população carcerária por tráfico de entorpecentes (tipificação de crime não violento) superior a 130 mil pessoas (cerca de 1/4 do total de presos). Para ter uma ideia da extensão desse número, basta somar os outros dois crimes numericamente expressivos (roubo qualificado e o roubo simples) e obteremos um valor que não chega a 90 mil presos. Além disso, é bem reconhecido o problema geral nas prisões do país: presos em locais inadequados, superlotação e pessoas vulneráveis à maus tratos e desrespeito aos direitos humanos. Em visto disso, ajudar a desafogar o sistema prisional (que muita gente que reclama não dá boas alternativas) parece uma prioridade. Sem contar a truculência policial que não sabe lidar com quem é consumidor, sobretudo os mais pobres.
                Aquele que se preocupa com prioridades não deixa de acentuar – com razão –, possíveis dificuldades de aplicações, como tempo e custo. Acontece que do ponto de vista operacional é muito fácil executar. Basta uma lei entrar em vigor e alguns poucos ajustes de recursos materiais. Aliás, já existe proposta (PL 7270) que não visa “liberar” (de fato, o uso da maconha já é recorrente), mas sim regular o uso. Isso significa que o projeto prevê uma quantidade máxima permitida ao usuário recreativo, e também pretende fazer com que os municípios possam arrecadar dinheiro com as vendas (parecido como o que Uruguai fez e semelhante ao projeto já proposto na Argentina).
                Argumentos científicos e morais podem ser defendidos também por uma análise história. E duas são as razões disso: O fracasso da chamada “guerra às drogas” e da Lei seca nos Estados Unidos. Tomando em conjunto, ambas fornecem evidências de que o proibicionismo aumenta a violência e traz danos socioeconômicos que poderiam ser minimizados caso a maconha fosse descriminalizada.
                É fácil manter uma postura proibicionista vastamente apoiada por vários veículos de comunicação. Difícil, entretanto, é alinhar estas posições diante das evidências históricas e da realidade do país. Os argumentos mais comuns do proibicionismo são mantidas por preconceito popular, sendo incapazes de resistirem ao escrutínio de informações científicas que revelam a urgência de se pensar em uma nova política sobre o uso de drogas.