domingo, 4 de novembro de 2012

Em defesa do direito do aborto



Micrografia eletrônica de varredura de um blastocisto de seis dias.

Antes de discorrer sobre alguns pontos específicos é necessária uma observação prévia. Penso que o ideal é que não houvesse o aborto. Ele deve ser a decisão última da mulher. O ideal seria que em frente a um imprevisto a mulher tivesse suporte afetivo e material para lidar com uma gestação. Entretanto isto está longe de ser uma realidade. Portanto, talvez o que mais me preocupa neste tema é a LIBERDADE de opção da mulher, que não pode ser tolhida em nome de um absolutismo moral. Logo, não creio que o aborto seja a primeira opção da mulher. É uma decisão difícil, mas é um julgamento final que cabe somente a ela. Atualmente a prática é vista como crime, e além de correr o risco de pegar sentença na cadeia, ela está se submetendo a um procedimento de risco em uma clínica clandestina.
Salvo em algum momento que eu indique o contrário, durante o texto sempre que eu utilizar o termo "aborto" a referência estará relacionado ao ato da interrupção da gestação até aproximadamente oito ou dez semanas de gestação. Não tive acesso aos dados de em que momento da gravidez a mulher comete um aborto, então não incluo os números de aborto praticados no país. É necessário estipular este período em função dos argumentos que apresentarei mais adiante. Também penso que em um contexto de descriminalizarão a mulher teria acompanhamento médico e psicológico para melhor conduzir sua decisão.
O critério de quando um indivíduo começa a existir não é tão arbitrário como algumas pessoas pensam. Desta forma, é necessário diferenciar embrião de feto. O primeiro diz respeito ao período em que ocorre a diferenciação orgânica, que vai da segunda até aproximadamente a sétima semana depois da fecundação. O segundo é relativo ao estágio de desenvolvimento intra-uterino, e que tem início após oito semanas de vida embrionária (1). Embora o cérebro esteja presente a partir da nona semana, este se encontra nono início do desenvolvimento e portanto em condições mínimas de operação (2); além disso, evidências apontam que a sensação de é inexistente antes do terceiro trimestre de gestação (3). Sendo assim, o cérebro só terá sua função completa no período fetal, e não no embrionário. Desta forma, quando se interrompe uma gravidez nas primeiras semanas está se interrompendo apenas o desenvolvimento de um conjunto de células, que não possuem nenhuma capacidade de sentir dor (justamente porque o sistema nervoso ainda não existe em completo desenvolvimento). Portanto, aborto e infanticídio são duas coisas completamente diferentes. Aborto, nesse sentido, nada mais é que interromper uma gestação nos primeiros estágios.
Naturalmente que é a questão de em qual momento um organismo pode ser identificado como uma “vida” que muitos anti-abortistas tentam argumentar. Entretanto, uma crença pessoal, sobretudo neste tema, tem elevada chance de ser desprovida de justificação se não tiver consistência baseada nas evidências. Acerca do tema do aborto, penso que o Estado deveria seguir o que a ciência diz sobre quais os atributos que caracterizam a existência de um ser humano, e não o que uma crença específica julga ser verdadeiro (aqui me refiro a crença no sentido de crer em algo, do tipo “acho que...”, e não necessariamente uma crença religiosa). A medicina considera a morte cerebral como critério para dizer quando uma pessoa morreu. Sendo assim, é logicamente defensável que o Estado deveria considerar a formação do cérebro como nascimento de um indivíduo, E NÃO A FECUNDAÇÃO. Seria determinismo genético definir a existência de um indivíduo apenas por seus genes (Stephen Hawking é genial não apenas por seus genes, mas também por sua trajetória cultural e experiências de vida). Se alguém pensa que existe uma vida humana dotada de consciência em um conjunto de células desprovidas de sistema nervoso (ou seja, nas primeiras semanas de gestação) é o ônus da prova dessa pessoa demonstrar. Não é o que a ciência adota como referência.
Não raro opositores do aborto desconsideram os dados mostrados pelas evidências ou eventos naturais do corpo da mulher. Estudos sugerem que a proporção de gravidezes resultando em aborto espontâneo pode chegar a 25% (4); outra inconsistência ocorre quando aqueles que são contra o aborto, porém fazem uso da pílula do dia seguinte. Tomando a pílula, a mulher também está evitando a gravidez, e disso nada tem de muito diferente de um aborto nas primeiras semanas de gestação (visto que neste estágio não passa de um aglomerado de células). Sendo assim, o argumento de "uma vida em potencial" não procede como defesa contra o aborto, uma vez que a masturbação masculina ou os óvulos que se perdem na menstruação feminina também poderiam ser considerados como uma vida em potencial de um indivíduo. Portanto, não vejo sentido lógico impedir a mulher de fazer o aborto caso seja sua vontade.
O aborto é uma realidade no Brasil; mulheres estão morrendo diariamente ao fazerem uso de procedimentos perigosos e inadequados.  Em face disso, a ONU já se manifestou para que o país tomasse medidas mais eficazes de proteção à mulher (5). Uma pesquisa realizada pela antropóloga Débora Diniz indica que "o aborto é tão comum no Brasil que, ao completar quarenta anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto." (6) A pesquisa também mostrou que a prática do aborto independe da crença religiosa, e, talvez o mais preocupante, que em cerca da metade dos casos ocorreu internação pós-aborto (para um esclarecimento mais rápido desses resultados ver a entrevista da referência 7).
A atual prática de aborto no país prejudica mais a mulher com menos condições financeiras, e não é por acaso que a curetagem liderou os procedimentos do SUS entre 1995 e 2007 (8). O Estado continua impedindo o aborto, mas gasta uma quantia elevada para pagar cirurgias de reparo das mulheres que chegam ao SUS vindo de clínicas nas quais são tratadas com o mínimo de cuidado. É uma lógica contraproducente: o Estado proíbe, mas paga para fazer reparos daquilo que ele mesmo proíbe.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a taxa de mortalidade de abortos induzidos se situa na faixa de 0,2 a 1,2 mortes para cada 100 mil abortos onde a prática é permitida. Por outro lado, nos países onde o aborto não é permitido, o número de mortes pode chegar a 330 para cada 100 mil habitantes. Em outras palavras, em países onde a prática é proibida, a mortalidade devida a abortos é mais que 300 vezes maior (9). Em face desses dados, dizer que o aborto não é questão de saúde pública é tapar os olhos para o óbvio.
Alguns tentam justificar sua posição anti-aborto através de uma opinião de que a prática não é ética nem mesmo humanista. Considero esta posição muito rasteira. Primeiro porque é uma tentativa vaga de encarar a situação de maneira unilateral; existem entidades declaradamente humanistas que são favoráveis ao aborto. Além disso, ética é uma disciplina da filosofia. Como exemplo, através do ponto de vista ético do utilitarista Peter Singer a prática do aborto pode ser plenamente defensável (10).  Tomando o problema de outra forma, o filósofo Michael Tooley (11) também defende o aborto a partir de uma análise do que significa ter direito a algo. Reconheço a existência de outros filósofos na área que se opõem ao aborto, mas citei dois apenas para mostrar que não existe um consenso absoluto do tema.
Os casos mais sensíveis são os anencéfalos. E apenas lembrando: má formação é muito diferente de anencefalia. No primeiro, dependendo do caso, o indivíduo pode viver tranquilamente - e em condições emocionalmente e materialmente satisfatórias eu não sugeriria ninguém a abortar se estivesse em pauta somente este motivo, mas, claro, a decisão última cabe somente para a mulher (e é este um direito que deve ser reconhecido para a mulher); no segundo, a chance de sobreviver é NULA (12). Sendo assim, penso ser uma crueldade OBRIGAR uma mulher a levar até o fim da gestação um feto que morrerá em poucas horas. Pelo menos neste caso nossos governantes já reconheceram que é bem menos custoso para mulher decidir pelo aborto nas primeiras semanas.
Em suma, o cenário atual coloca o Estado como um agente proibitivo de uma decisão que cabe somente ao corpo de uma pessoa. A questão aqui não é a imposição, mas a liberdade de escolha. E o Estado, e nenhuma outra pessoa, devem ditar regras com relação ao que fazemos ao nosso próprio corpo. Ter decisão sobre o próprio corpo é reconhecer um direito natural das mulheres. Portanto, tal prática não deve continuar a ser vista como um crime.

Referências 

(1) Klossner, N.J. - Introductory Maternity Nursing, 2006, pg.103
(2) http://en.wikipedia.org/wiki/Fetus#cite_note-11
(3) Lee, S.J. et al.; Fetal Pain - A Systematic Multidisciplinary Review of the Evidence; JAMA, 2005, Vol 296, n°8.
(4) Wilcox et al. 1999, New England Journal of Medicine

(10)Singer, Peter. Ética Prática. Ed. Martins Montes.
(11)Tooley, Michael. Abortion and Infanticide, Philosophy & Public Affairs, Vol.2, 1972.

Atualização (17.11.12): Este texto também foi publicado no Projeto Livres Pensadores